segunda-feira, 18 de julho de 2011

O dragão e a princesa.

“Os ossos e a carne – pensava – não bastam para formar um rosto, e é por isso que ele é infinitamente menos físico do que o corpo: é determinado pelo olhar, pelo ríctus da boca, pelas rugas, por todo esse conjunto de atributos sutis com que a alma se revela por meio da carne. Razão pela qual, no momento exato em que alguém morre, seu corpo se transforma abruptamente numa coisa diferente, tão diferente a ponto de se dizer “não parece a mesma pessoa”, apesar de ter os mesmos ossos e a mesma matéria de um segundo antes, um segundo antes do misterioso instante em que a alma se retira do corpo e este fica tão morto como uma casa da qual se retiram para sempre os seres que moram nela, e, sobretudo, que sofreram e se amaram nela. Pois não são as paredes, nem o telhado, nem o soalho que individualiza a casa, mas essas criaturas que lhe dão vida com suas conversas, seus risos, seus amores e ódios; criaturas que impregnam a casa de algo imaterial mas profundo, algo tão pouco material como o sorriso num rosto, embora se manifestando em objetos físicos como tapetes, as flores nos quartos, os discos e os livros, conquanto objetos materiais, são, porém (assim como os lábios e as sobrancelhas também pertencem à carne), manifestações da alma, já que a alma só pode se manifestar aos nossos olhos materiais por meio da matéria, o que constitui a sua precariedade mas também a sua curiosa sutileza.(...)"

-Ernesto Sabato;
"Sobre heróis e tumbas"

Um comentário:

  1. Belo excerto, Jess... Cheio de metáforas que mostram claramente a multiplicidade presente em nossas vidas, e que devemos considerar todas as suas intensidades. Infelizmente, em muitas vezes reduzimos o "rosto" ou a "casa" em algum de seus "componentes" (somente o sorriso do rosto; ou o riso na casa), e acabamos por esquecer aquilo que nos torna humanos, aquilo que faz realmente nosso corpo pulsar e emanar vida, mas mesmo assim achamos que está tudo bem, ou que temos conhecimento total daquilo que nos move. Esquecemos que a alma tem "(...)a sua precariedade mas também a sua curiosa sutileza.(...)"

    Continue sendo esta pessoa cheia de multiplicidades que você é. O seu sorriso não é só um simples sorriso...

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